Dispositivos de um futuro-passado

laura benevides
4 min readJan 4, 2021
Haus-Rucker-Co, Oease №7, instalação na Documenta 5, Kassel, Alemanha, 1972

No começo da quarentena, em uma das milhões de conversas online que assisti, reencontrei a instalação Oase №7 (1972). Dessa vez pude salvar a imagem e guardá-la numa pasta onde “organizo” todas as minhas referências. Normalmente esqueço o que tem lá, mas dessa vez não conseguia tirar aquela imagem da cabeça.

Comecei então a pesquisar mais sobre o grupo Haus-Rucker-Co (autor dessa instalação) e descobri o Environment Transformer (1968), mesma época em que eu estava acompanhando as bem humoradas postagens do escritório austríaco Plastique Fantastique com sua iShield. 53 anos separam essas experiências (eu acho incrível quando encontro “coisas” que flutuam nesse eterno ir e vir no tempo) e isso me levou a caminhar desse futuro que habitamos até o passado, mais especificamente até algumas das propostas radicais das décadas de 60 e 70.

Oase №7 foi projetado para a Documenta 5 em Kassel. Tratou-se de uma esfera transparente anexada à fachada do Museu Friedericianum. Desde um espaço privado, intervieram sobre o espaço público criando um espaço aéreo contemplativo e habitável. Acho interessante pensar nessas propostas de colonização do ar — meio Jetsons, meio Cidade Instantânea (1969) — a partir de uma perspectiva contemporânea porque não me parecem distantes dos objetivos da corrida espacial rumo à colonização da Lua e Marte.

Haus-Rucker-Co, Oease №7, instalação na Documenta 5, Kassel, Alemanha, 1972, foto: Hein Engelskirhcen

Voltando ao Haus-Rucker-Co, o grupo vienense fundado em 1967 explorava o potencial performático da arquitetura a partir de propostas utópicas de instalações pneumáticas e dispositivos protéticos que aproximavam o espírito pop da ficção científica. Eram experimentos que rompiam com a frieza e racionalidade do modernismo.

Os sistemas de controle e disciplina do corpo foram analisados e desconstruídos por muitos artistas na década de 60 por isso não me parece uma coincidência que tais discussões tenham avançado para o campo arquitetura a partir de uma dimensão lúdica e performática que incentiva a percepção do corpo no espaço em ambientes experimentais tecnicamente mediados. Muitas das propostas do Haus-Rucker-Co e de outros grupos nesse período alteravam as percepções espaciais do entorno e propunham aos usuários viagens psicofísicas.

Laurids, Zamp and Pinter em Environment Transformern (Flydead, Viewatomizer and Drizzler), 1968, foto: Gert Winkler

Em Environment Transformer (1968), por exemplo, o grupo experienciou as ruas de Viena usando máscaras que alteravam suas percepções (a máscara Flyhead, por exemplo, distorcia a visão e a acústica). Achei muito curioso que esses capacetes propunham naquela época uma estranha realidade que hoje, em alguma medida, se realiza com o uso das face shields. Ainda que estas não tenham o objetivo de distorcerem as nossas percepções, claramente causam uma certa desorientação e estranheza e ativam uma dimensão sensorial na interação social e percepção da realidade muito diferente da qual estávamos acostumados.

Plastique Fantastique, iSphere, frame da videoperformance iSphere, 2020

No caso de Plastique Fantastique o coletivo propõe com seus trabalhos uma reflexão sobre os usos do espaço público e essa difusa fronteira entre o público e o privado. Mobilizados pela pandemia e o estabelecimento das restrições sanitárias quando propõem a iSphere eles alteram a escala de suas instalações artísticas até uma dimensão individual materializada em um escudo esférico (que pode ainda receber dispositivos adicionais como microfone, fone de ouvido, ventilador, sombreiro).

Plastique Fantastique, iSphere, frame da videoperformance iSphere, 2020

Os vídeos performáticos de Marco Canevacci e Yena Young (integrantes do coletivo) nos transportes públicos de Berlim, apesar de parecem registros de um filme de ficção científica, abordam esse contexto excepcional em que questionamos o toque físico e os efeitos desses comportamentos na nossa sociabilidade. Com ironia (e claramente influenciados pelos “movimentos utópicos” dos anos 60) nos sugerem uma das visualidades dessa realidade pós-pandêmica.

Não faltariam projetos utópicos interessantes para analisar (e talvez eu volte a falar de alguns deles em outro momento), mas dessa vez espero que tenha sido interessante fazer esse percurso entre esses experimentos que em alguma medida se conectam à nossa realidade contemporânea de reorganização das relações sociais e de percepção do nosso próprio corpo e sua relação com o ambiente (não só porque nos isolam, mas criam um novo espaço que podemos explorar).

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laura benevides

pesquisadora e arquiteta. reúno aqui textos que escrevo sobre arte e arquitetura.