Quem está invisível na manutenção dos nossos cotidianos?

laura benevides
2 min readAug 31, 2020

Conheci o trabalho de Daniela Ortiz em um curso de fotografia latino-americana e venho desde então acompanhando seu olhar sempre muito lúcido e crítico sobre questões vinculadas à classes sociais, gênero e imigração.

“97 empleadas domésticas” (2010) é um dos trabalhos sobre os quais eu sempre quis falar, tão conectado à realidade brasileira ainda que os registros sejam de famílias peruanas (o Brasil é o país com a maior população de domésticas do mundo, uma marca da absurda desigualdade social).

Publicação (foto: àngels barcelona)

A priori os registros (retirados do Facebook entre 2008 e 2009) são de famílias de classe alta em momentos cotidianos de aparente ausência de conflitos, mas uma imagem é parte constitutiva de uma trama social, política… e aqui ela denuncia a invisibilização das responsáveis pelas atividades de manutenção que sustentam nossos cotidianos (em sua maioria, mulheres).

Lembrei do “Manifesto pela Arte de Manutenção, 1969!” de Mierle Laderman Ukeles, quando a artista eleva atividades de manutenção ao status de arte e entrevista diferentes classes sociais e tipos de ocupação incluindo “o cara da manutenção”, “o cara do correio”, “a empregada”… A proposta das duas artistas não é a mesma, mas se encontram quando colocam o foco em quem/o que está ofuscado pelas relações de poder que estruturam a nossa sociedade.

Voltando às fotografias reunidas por Ortiz, as imagens questionam: o que escapa à autorrepresentação desses grupos sociais? esses registros aparentemente inocentes e apolíticos evidenciam, em verdade, a subalternização dessas mulheres, ausentes apesar das suas presenças, aprisionadas à essa condição “como se fossem da família”.

A experiência do isolamento visibilizou ainda mais a importância dos cuidados e a dimensão política do espaço doméstico, mas também nos afirma como a nossa dinâmica histórica, social, geográfica mudou pouco. Voltemo-nos aos arquivos, quem pode aparecer nos registros? Quem está fora de foco? quem escapa do enquadramento? Por quê? Em quem se apoiam as estruturas?

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laura benevides

pesquisadora e arquiteta. reúno aqui textos que escrevo sobre arte e arquitetura.